quinta-feira, 10 de maio de 2012

A Pele que Habito serve banquete antropofágico de referências


Com “A Pele que Habito”, Pedro Almodóvar se torna o mais brasileiro dos cineastas europeus. A trama incorpora uma canção brasileira, um personagem nascido no Brasil e o nome Vera Cruz para designar a prisioneira de seu mistério. Mas além de sua obsessiva admiração pelo país, especialmente pela MPB, sua conduta assumidamente antropofágica remete ao sentido que Oswald de Andrade atribuía à palavra.
Desta vez, ele nos induz a devorar iguarias das mais diversas e disparatadas, algumas até meio indigestas. O primeiro prato ofertado é um clima de ficção científica, com Antonio Banderas dando tudo de si no papel de um cirurgião plástico, em pausadas sequencias que parecem os velhos pseudo-documentários de Jean Manzon.

Com uma aparência de dignidade semelhante à de Montgomery Clift em “Freud Além da Alma” (de John Huston, 1962), Banderas passa pelas costumeiras cenas de conferência na universidade e detalhes de um laboratório high tec, onde ele fabrica uma pele humana transgênica desenvolvida a partir do couro de porco. Por trás disso, já se insinua como prato principal o sarcasmo servido ao molho de ironia, tão própria do diretor, ao armar piadas e reviravoltas que só farão sentido na segunda parte do filme.
Só aí será possível perceber o verdadeiro sabor de algo que, sem saber, estávamos mastigando desde o início. Da mesma maneira, para não estragar surpresas, diremos apenas que o roteiro trabalha com os limites da ciência e da ética em relação à transexualidade e a transgênese.

Nesse ponto, o banquete vai ficando sombrio, enquanto vemos que o brilho e a limpeza no mundo exterior do médico é apenas uma couraça apolínea para esconder o seu espaço interior, cheio de ódios e desejos recalcados.
O cinema noir dos anos 1940 se aprofundava nessa contradição, mas saiu de moda antes que os cineastas pudessem atingir os abismos mais secretos da alma humana. É justamente o que pretende fazer Almodóvar, acrescentando mais temperos ao caldeirão.

Ele abocanha e engole referências da literatura clássica e gótica, imaginando uma integração de um mito do tempo antigo (“Pigmalião”) com uma lenda moderna (“Frankenstein”), num enredo que esbarra em figuras-chave do romantismo como “O Conde de Monte Cristo” e “A Máscara de Ferro”.
Logo de início, percebe-se que o personagem de Banderas é mais monstro do que médico, porque há anos mantém uma bela mulher presa em sua clínica – alguém que, depois de retirada as ataduras do rosto, se mostra idêntica à esposa do cirurgião, morta num acidente.

Para não enlouquecer naquela prisão aparentemente elegante, ela pratica ioga no estilo Ayengar que aprende pela TV, e recusa as doses de ópio que o dono da casa lhe oferece – mostrando que está empenhada em adquirir autocontrole e equilíbrio.
Em geral, os professores de roteiro desaconselham os flashbacks por interromperam o fluxo da narrativa. Mas Almodóvar está cima das técnicas de redação e a trama central vai se revelando por meio de dois flashbacks orquestrados com mão de mestre. O primeiro deles desperta o interesse para o segundo, como dois capítulos de novela, ainda que cada um dos dois seja construído a partir do ponto de vista de personagens diferentes.

Em sua espinha dorsal, o roteiro adota uma estrutura de filme de horror e suspense. Na verdade, porém, o repertório desses gêneros serve de material básico para este pot-pourri, ou melhor, dessa paella de paródias preparada por Almodóvar. Tem até melodrama, em que o espanhol brinca com o humor de Hitchcock, devolvendo-lhe uma piada – ao inverter a própria inversão estilística de “Psicose” (1960), pela qual o assassino se transforma em protagonista.
Outro dado curioso é a obscura canção chamada “Pelo Amor”, cantada num português incompreensível. Ela foi tirada de “Os Bandeirantes” (1961), um filme praticamente desconhecido que Marcel Camus fez no Brasil, dois anos depois de “Orfeu Negro”. Junto com a desconcertante surpresa final, eis a sobremesa nesta comilança antropofágica de Almodóvar.

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